Okay, eu confesso: já não tiro o pijama todos os dias. E o meu cabelo está comprido demais. Dia sim dia não dou um passeio higiénico e sou invariavelmente abordada pela polícia, marchando rapidamente de volta para casa. Já não tenho ideias para cozinhar. Gasto demasiado dinheiro a encomendar livros que não consigo ter tempo para ler. E ontem até deixei a gata esquecida ao frio na varanda, durante uns poucos minutos, para repreensão da vizinha.
Dito isto, ainda não saí à rua de fato de treino. Todos temos os nossos limites. Vamos a mais uma semana?
Ponto de ordem
Olhámos pouco para a Arménia e para aquela zona do globo, em geral. Mas o que ali se passa é digno de atenção — não só porque qualquer sítio onde existam humanos merece interesse, mas também porque a Arménia está num nó geopolítico altamente apertado, com Rússia de um lado, Turquia do outro e o eterno inimigo Azerbaijão pelo caminho.
Esta quinta-feira, o primeiro-ministro arménio Nikol Pashinyan convocou multidões às ruas (Deutsche Welle), acusando o Exército de ter tentado levar a cabo um golpe de Estado para o afastar. A situação agravou-se este sábado, quando Pahinyan tentou demitir o chefe do Estado-Maior do Exército, mas viu o pedido ser-lhe negado pelo Presidente, Armen Sarkissian, segundo conta a Euronews.
Recorde-se que Pashinyan foi democraticamente eleito como primeiro-ministro em 2018, depois de ter liderado uma série de manifestações pacíficas, que ficaram conhecidas como “A Revolução de Veludo” (BBC). Foi um momento histórico, num país dominado pelo Exército e pela influência russa desde o fim da União Soviética.
Agora, com os recentes desenvolvimentos, o Kremlin já fez saber que está atento (WION) e que aconselha Yerevan a cumprir os acordos de cessar-fogo assinados em Nagorno-Karabakh. Este é o nome em torno do qual tudo gira: Nagorno-Karabakh, um enclave arménio dentro do território do Azerbaijão, é disputado pelas duas nações há décadas. O conflito adormecido esporadicamente reacende-se, como explica o site Meduza:
“After the Soviet Union’s collapse, the conflict became a full-fledged war. In the summer of 1994, after six months of the heaviest fighting, a ceasefire was finally reached. With Armenia’s support, the self-proclaimed Nagorno-Karabakh Republic had managed not only to maintain control over its territory as a former autonomous oblast but also to break through to the Armenian border, ceasing to be an enclave. Karabakh Armenians also succeeded in occupying several towns inside Azerbaijan near the boundary. In total, the war claimed the lives of more than 15,000 soldiers and several thousand civilians.
The cessation of major combat, however, did not lead to real peace. On average, in fighting along the boundary every year, ever since, roughly 30 people have died. In 2016, the two sides used heavy artillery for the first time.”
“Aqui, tudo gira em torno de Nagorno-Karabakh”, disse-me uma jovem arménia quando visitei Yerevan, ainda antes da “Revolução de Veludo”, ao vermos passar dois soldados vestidos de camuflado. A influência do conflito é tremenda na política interna da Arménia. E, também por isso, o peso do Exército é desproporcional, como argumenta o professor Nerses Kopalyan no site independente arménio Yerevan Report.
A verdade é que esta tempestade que agora se volta a abater sobre a Arménia não é nova. A cada ciclo de violência no enclave, sentem-se repercussões na capital. Agora, depois do cessar-fogo alcançado com a ajuda da Rússia no final do ano passado, o primeiro-ministro parece enfraquecido para alguns. Os desafios que Pashinyan tem pela frente são muitos, avisa Richard Giragosian (IPS Journal(.
No meio disto tudo, e perante uma crise política relacionada com um conflito que tem os olhos de russos (tendencialmente apoiantes da Arménia) e turcos (aliados do Azerbaijão) ali fixados, que papel sobra à União Europeia? É sobre isso que este artigo do Carnegie Europe reflete, pedindo aos líderes europeus que se envolvam mais no país, para promover uma democratização plena da Arménia — e, acrescento eu, desacentuar a dependência económica que o país tem da Rússia. “O meu sonho é sair daqui e ir para a Europa”, disse-me a mesma jovem que referi há pouco, quando estive em Yerevan, em 2017. “Mas quando digo isso aos meus pais, eles dizem que os europeus não querem saber de nós. Só temos os russos.”
Outras latitudes
O futuro da casa fotografada por Robert Capa em Madrid, durante a Guerra Civil de Espanha (El País)
António Tajani fala sobre a situação em Itália e admite que a Liga se possa juntar ao PPE (New Europe)
Fontes diplomáticas garantem que Josep Borrell, representante da política externa da União Europeia, pediu desculpa em privado aos colegas pelo desastre em Moscovo (Euractiv)
A Amnistia Internacional retirou o estatuto de “prisioneiro de consciência” a Alexey Navalny, na Rússia, por declarações xenófobas no passado (BBC)
A CIA divulgou o seu relatório sobre a morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi. O responsável é claro: o príncipe saudita Mohammad bin Salman (The Guardian)
Nos Estados Unidos da América, os filhos dos membros do QAnon enfrentam o mergulho dos pais nas teorias da conspiração (Highline — Huffington Post)
Na República Democrática do Congo, um diplomata italiano foi assassinado. Há mais dúvidas do que certezas (AFP)
O que esperar relativamente ao conflito na Etiópia? (New African Magazine)
Pela primeira vez, um sírio foi condenado pelo seu papel na repressão dos protestos da Primavera Árabe, ao serviço de Bashar al-Assad. Foi na Alemanha (Al-Jazeera)
A Coreia do Sul e o Japão discutem ainda o tema das “mulheres de conforto” — e as vítimas querem que o tema seja julgado em Haia (Korea Herald)
Regresso ao futuro
Há precisamente 40 anos, Bobby Sands dava início à sua greve de fome na prisão.
Foi um dos maiores picos de tensão durante os Troubles, com o movimento separatista da Irlanda do Norte a conseguir atenção mundial e uma mobilização sem precedentes. Bobby Sands era membro da organização terrorista IRA e cumpria uma pena de prisão de 14 anos em Maze, Belfast, por “posse de arma ilegal”. O objetivo da greve de fome, a que se juntaram outros presos ligados ao IRA, era o de serem reconhecidos como presos políticos e não presos por delito comum.
Pelo meio da greve de fome, Bobby Sands e a liderança do IRA decidiram que poderia ser útil, para chamar mais a atenção para a causa, que Sands se candidatasse ao Parlamento britânico, pelo Sinn Féin. Assim aconteceu (BBC), tendo sido eleito a 10 de abril a partir da prisão, mas nunca tomando posse — como é hábito dos deputados do partido nacionalista irlandês, por não reconhecerem a legimitidade da Coroa britânica.
“Para ser honesto, acho que vou morrer”, chegou a escrever Sands numa nota enviada à liderança do IRA, como relata este completo trabalho da cadeia canadiana CBC. Tinha razão. A primeira-ministra Margaret Thatcher não cedeu e o IRA incentivou o protesto. Dois meses depois, Bobby Sands morria.
Com a notícia da morte de Sands, nas ruas de Belfast explodiram os motins, como este, captado pelo fotógrafo Yan Morvan. Na prisão de Maze, o ambiente era igualmente tenso, como se pode ler no Irish Examiner:
“The mood in the H Block was terrible,” says Anthony McIntyre. “The screws (prison wardens) weren’t letting us out of the cells. We had a radio smuggled in but we had to wait to access the news. Brendan Hughes (the officer commanding during the 1980 hunger strike) announced Sands had died. Up until his funeral there was silence in the wing. There was a molten rage, anger, grief, but we didn’t say anything.”
Para os Republicanos, Bobby Sands tornou-se uma lenda, um herói, um mártir importante para alimentar o ideário nacionalista irlandês junto de novas gerações. O seu funeral foi o maior alguma vez ocorrido entre a comunidade católica de Belfast:
Mas a história da Irlanda do Norte é uma história de dor distribuída tal-qualmente. Do lado unionista, o nome de Sands também provoca dor, mas por razões bem distintas:
“The deaths of the hunger strikers was a human tragedy – it was a tragedy allowed and encouraged to happen because of the ideology for which those men subscribed allegiance. But greater still was the tragedy caused by the actions of terrorism and others who committed criminal violence in the context of the Troubles – the hunger strikers had a choice to live; they and their ‘comrades’ did not extend that same fundamental right to others”, relembrou um ativista protestante ao Newsletter, em 2016.
Sou toda ouvidos para…
Chama-se Aria Code e é simplesmente uma delícia de ouvir. Não me sabia fã de ópera, mas desde que descobri este podcast que estou fascinada. Uma ária, dois participantes — normalmente alguém que já tenha interpretado aquela ópera e um especialista no compositor — e eis que se disseca ao pormenor cada estrofe e cada nota. Este episódio, sobre a Lady Macbeth de Verdi, é simplesmente extraordinário. E, no fim, ganha-se sempre o direito a ouvir a ária completa.
GIF da semana
Depois de esta semana ter recordado com alguns amigos os bons tempos do Príncipe de Bel-Air, sinto uma nostalgia que não é habitual em mim. Antes que comece a soltar lágrimas com uma série de comédia, é melhor ir andando. Espero que tenham uma boa semana!
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