A húbris europeia com as vacinas, cinco anos dos atentados na Bélgica e as palhaçadas de BoJo
Edição #10
Chegou a Primavera, os passarinhos cantam, mas há coisas que nunca mudam, como as segundas-feiras.
Agora que já vos arranquei um sorriso da cara e peguei em mais uma dose de café reforçada para enfrentar outra semana, vamos a isto.
Ponto de ordem
Esta semana, o tema vacinação e União Europeia é incontornável, sobretudo depois dos avanços e recuos relativamente à vacina da AstraZeneca. Não apenas porque a pandemia nos preocupa a todos, mas porque esta é também uma questão de política europeia que envolve a robustez (ou falta dela) da UE e as relações com o Reino Unido pós-Brexit — tudo num contexto em que China e Rússia reforçam a sua “diplomacia das vacinas”, exportando doses para países escolhidos a dedo.
Quanto à polémica com a AstraZeneca, suspensa por vários países (entre eles Portugal) durante vários dias, nada como o olhar de um não-europeu para ir ao ponto e resumir o que estava em causa (Washington Post). Mas as notícias continuaram a cair em catadupa ainda ao longo do resto da semana: a Autoridade Europeia do Medicamento não viu qualquer problema na AstraZeneca e a maioria retomou a vacinação. De seguida, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ameaçou suspender as exportações da vacina, porque afinal faz falta aos europeus (Le Monde). E, entretanto, Angela Merkel fez uma conferência de imprensa (Deutsche Welle) onde, por entre os pingos da chuva, mencionou que a Alemanha está a pensar encomendar doses da Sputnik V, a vacina russa. Confusão, não reconhecimento de erros e uma lógica de “cada um por si” começam a dominar a Europa nesta matéria.
É por isso que entre as opiniões mais interessantes publicadas sobre esta matéria, a grande maioria são críticas fortes à UE. Na edição europeia do Politico, escreve-se que as cautelas que levaram à suspensão da AstraZeneca podem ter efeitos contraproducentes; na norte-americana Foreign Policy chama-se a atenção para a população mais envelhecida na Europa e para os efeitos macroeconómicos desta decisão; e no site britânico UnHerd, Peter Franklin é ainda mais duro, dizendo que a UE “perdeu a cabeça”:
I’d like to think that this week’s renewed attack on AstraZeneca is evidence of a political panic. “Let’s blame somebody else before the voters blame us” would be a logical, if cynical, motivation. However, I fear that it’s not cynicism at work here, but a much more dangerous force: self-righteousness.
Wolfgang Münchau relembra também (EVRO Intelligence) que, por comparação com o processo rápido de vacinação no Reino Unido, a UE dai a perder da luta de perceções pós-Brexit, dando “uma razão racional e não ideológica para o eurocepticismo”. E por falar em Reino Unido, aqui fica uma entrevista muito interessante com Kate Bingham (The Telegraph), a responsável pelo grupo de trabalho da vacinação no Reino Unido, que acusa os líderes europeus de terem sido “irresponsáveis” relativamente à britânica AstraZeneca.
Nos Estados Unidos da América, a AstraZeneca ainda não foi aprovada, mas a vacinação também segue a bom ritmo. O economista Paul Krugman faz a comparação do processo norte-americano face ao europeu (New York Times) e não poupa nas críticas aos líderes da UE, que acusa de terem negociado de forma errada com as farmacêuticas, ao tentar poupar tostões numa crise sem precedentes:
Needless to say, here in America we have a much more relaxed attitude toward corporate profiteering — too relaxed, much of the time. But in this case it served us well, because we didn’t pinch pennies in a health crisis.
E quanto às dúvidas sobre a segurança da AstraZeneca, deixo-vos com esta reflexão, também no Unherd, que tenta enquadrar cientificamente a relevância do número 37, o número de casos em que a vacina provocou coágulos sanguíneos.
Arriscado ou não, certo é que agora os países europeus voltaram a autorizar a vacina e enfrentam agora um grave problema de confiança dos seus eleitorados na AstraZeneca. É por isso que o primeiro-ministro francês, Jean Castex, já foi recebê-la (Nouvel Obs), para dar o exemplo.
Mas o mal pode estar feito. Veja-se o caso de Itália, onde as estatísticas mostram uma grande desconfiança das pessoas face à vacina britânica (La Stampa). E quem sai reforçado de tudo isto? Os teóricos das conspirações (Coda Story). E os populismos.
Outras latitudes
A estratégia de Pablo Casado para reconstruir o centro-direita em Espanha (El País)
A história incrível de José Epita Mbombo (El País)
Nas Canárias, pode estar a formar-se um novo Calais (Infomigrants)
Uma extraordinária reflexão sobre a persona de Boris Johnson e o significado da ideia de “palhaço” (The Guardian)
França altera lei sobre consentimento sexual de menores depois de vários escândalos (Politico)
No frio Alasca, a cimeira entre Estados Unidos e China aqueceu (South Morning Herald)
O dia-a-dia dos prostitutos das ruas de São Paulo, no Brasil (TAB - UOL)
Na Venezuela, há obras de arte a desaparecerem dos museus nacionais (Cinco 8)
A Tanzânia tem uma nova Presidente. Quem é? (BBC)
A Turquia quer discutir um novo plano para “os direitos humanos” (Slate.fr)
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Palestina terá eleições em breve. O que significa isto? (ECFR)
Os efeitos do “agente laranja” ainda se sentem no Vietname e no Laos (New York Times)
O confinamento nas Filipinas é ainda mais duro para os mais novos (Al-Jazeera)
Não nos esqueçamos do que se passa na Coreia do Norte (Human Rights Watch)
Regresso ao futuro
A efeméride de hoje, 22 de março, são os cinco anos dos ataques terroristas na Bélgica, tanto no aeroporto de Zaventem como na estação de metro de Maelbeek. Ao todo, 32 pessoas morreram.
Os relatos das testemunhas (The Guardian) são, como seria de esperar, chocantes:
“It is war – it is indescribable,” said Pierre Meys, spokesman for the Brussels fire department. “Everything is destroyed, in pieces.” He compared the injuries the victims suffered to those of wartime. “I have been in this job for 40 years, and this is the most serious I have seen.”
E os efeitos nas vítimas duram muito para lá da explosão. Isso mesmo relata Mark Beamish, que continua a apanhar todos os dias no metro na mesma estação de Maelbeek (Euractiv) e Nidhi Chaphekar, a mulher que protagonizou a foto no aeroporto que correu mundo, com Nidhi ensanguentada, de camisa aberta e cheia de pó (CNN).
Os efeitos do terrorismo nas famílias das vítimas e nos sobreviventes são sempre a face mais dura desta realidade. Mas é também preciso pensar em como combater este fenómeno. Nos dias seguintes ao ataque, muito se discutiu sobre a eficácia da segurança na Bélgica ou a concentração de ex-combatentes na Síria no país (Politico).
Mas não podemos esquecer o difícil equilíbrio entre segurança e liberdade. Que o diga Fayçal Cheffou, suspeito de pertencer ao grupo que planeou o ataque: foi detido e a sua identidade manchada com o libelo de terrorista publicamente. Agora, em janeiro de 2021, a justiça belga ilibou-o por completo e pediu-lhe desculpas (HRW).
Sou toda ouvidos para…
Porque preciso sempre de treinar o meu pobre francês, aventuro-me por vezes em podcasts nesta língua. O Les Contrariantes foi uma bela surpresa que descobri esta semana: duas jornalistas (uma mais à esquerda, outra mais à direita), conversa e um convidado. Uma visão moderada do mundo e da política, é pelo menos o que nos prometem neste muito interessante primeiro episódio.
GIF da semana
Deixo-vos com o bom humor de Boris Johnson, aquando da sua ajudinha no processo de vacinação.
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