Bom dia!
Cá estamos para mais uma semana. E começamos com uma mensagem muito pedagógica da maravilhosa Dolly Parton a propósito da Covid-19.
Não sei quanto a vocês, mas eu já levei a minha primeira dose e mal posso esperar pela segunda. Mas como o mundo não gira só em torno da Covid, vamos ao resto.
Ponto de ordem
Rebentou uma bomba chamada Pegasus. O software criado por uma empresa israelita permitiu a vários governos espiar mais de 200 jornalistas em 21 países, bem como chefes de Estado e ativistas. A investigação é resultado de um esforço conjunto da Amnistia Internacional e de alguns media tradicionais como o The Guardian e o Washington Post.
Como sempre, a BBC resume bem o que está em causa. E o próprio Washington Post faz um breve resumo das principais conclusões a tirar deste trabalho. Drew Harwell, um dos jornalistas norte-americanos responsáveis por este furo, explica o que está em causa (NPR):
Pegasus works in a really uniquely scary way, because it relies on something called zero-click hacking. A lot of the traditional spyware requires you to click on a spammy (ph) link, right? You get a bad text or an email. You open a document, and you give your computer away. Zero-click means you don't have to do anything and you can still be made vulnerable. And one scary thing from our investigation was that Apple iPhones - even if you were all the way updated, you had the newest generation of iPhone, you could still be vulnerable. We ran tests that found forensic evidence of actual hacks of these updated devices. So Pegasus really is a symbol of how scarily sophisticated the spyware industry has become.
Sobre a NSO, empresa responsável pela criação do programa, e as suas ligações em Israel, sugiro o texto mais aprofundado do The Guardian. Oficialmente, o grupo nega saber que o seu software estava a ser utilizado para atos de espionagem (BBC).
E agora vamos aos casos. O Presidente francês, Emmanuel Macron, foi um dos chefes de Estado cujo telemóvel foi alvo do Pegasus, como noticiou o Le Monde, num ataque promovido por Marrocos. E os casos de jornalistas espiados sucedem-se, seja no México (Deutsche Welle), seja no Azerbaijão (Committee for Protection of Journalists).
Os ativistas não escapam à teia. Foi o caso da mulher de Jamal Kashoggi, o jornalista saudita assassinado na embaixada do seu país na Turquia (Washington Post) e da princesa do Dubai que tentou fugir da família (Washington Post). A filha de Paul Rusesabagina, o ruandês que inspirou o filme Hotel Ruanda, também garante ter sido espiada pelo Pegasus, mas tal ainda não foi confirmado por terceiros (CNN).
Na Hungria, o único país europeu onde alegadamente o Governo recorreu ao Pegasus, já foi aberta uma investigação pelo Ministério Público (Al-Jazeera). Veremos o que concluirá a Justiça.
Mas qual a principal conclusão a retirar daqui? Com um rol de países envolvidos como Marrocos, Hungria, Índia, México, Azerbaijão e outros tantos, não encontramos os suspeitos do costume. Sabemos que a China faz regularmente espionagem — veja-se o caso desta grande investigação da ProPublica — e que a Rússia é useira nestas estratégias, por exemplo. Mas em Moscovo, argumenta Andrei Soldatov, as revelações do Pegasus dão força a uma teoria defendida pelo Kremlin: a de que todos fazem isto (Moscow Times):
The investigation into Pegasus was prompted by a leak of a list containing over 50,000 phone numbers that had likely been identified as people of interest to NSO’s clients.
That suggests the targets of surveillance in multiple countries were compiled into one list, and this list was maintained not by the spy agencies, but by NSO itself.
And after all, who could blame the FSB for being paranoid after such a leak?
A verdade é que o uso massivo destas tecnologias não é novo e é recorrentemente utilizado por países não-democráticos. E não só: quem pode esquecer o caso de espionagem da NSA sobre Angela Merkel, que gelou as relações EUA-Alemanha? (Der Spiegel). Mas o facto de o Pegasus ser produzido por uma empresa independente e contratado por Estados, em vez de serem os serviços secretos dos respetivos países a atuarem, mostra-nos que a espionagem tecnológica chega cada vez mais a todos os que forem capazes de pagar por ela. E isso, meus caros, significa um mundo ainda mais inseguro para todos nós.
Outras latitudes
Os dissidentes que se recusam a abandonar a violência na Irlanda do Norte (The Guardian)
Na Noruega, dez anos depois dos ataques de Breivik ainda há muita discussão a fazer (Unherd)
A polémica sobre a comunhão de Joe Biden nos EUA (PRI)
Uma reflexão sobre Cuba vinda de dentro da própria esquerda (Joven Cuba)
A confusão continua a reinar no Haiti (The New York Times)
O novo Presidente do Perú vai dar que falar (London Review of Books)
O que pode acontecer agora na Etiópia (Crisis Group)
A Serra Leoa pode vir a abolir a pena de morte (The New York Times)
Na África do Sul, há quem esteja a reagir aos motins (Christian Science Monitor)
O polémico referendo contra a comunidade LGBT na Hungria (Euractiv)
Recordar Srebrenica através de gravações marcantes (Newlines Magazine)
Quem é Lyubov Sobol, aliada de Navalny na Rússia? A espantosa Masha Gessen conta (New Yorker)
As mulheres que tentaram tomar o controlo da sua vida na Síria (Weapons of Reason)
Em Myanmar, há mulheres a dar à luz no meio da selva (Al-Jazeera)
Regresso ao futuro
Hoje assinalam-se os 29 anos da declaração unilateral de independência da Abecásia. O que é a Abecásia? Onde fica? Se é um país independente, porque quase não ouvimos falar dele? Bom, as respostas a estas perguntas não são simples. A Abecásia é um pequeno enclave no Cáucaso, que fica entre a Rússia e a Geórgia. Fez parte da União Soviética, mas, com o dissolução deste Império, entrou numa situação complicada de guerra pela sua independência da Geórgia, país onde está integrada.
Atualmente, considera-se uma nação independente. Essa independência, porém, só é reconhecida internacionalmente por quatro países: Nicarágua, Venezuela, Nauru e a própria Rússia que, como veremos, continua a manter uma profunda influência na região. Tudo isto e mais um pouco está bem resumido neste artigo publicado em 2001 no antigo site Conciliation Resources. Algumas fotos sobre a guerra pela independência contra a Geórgia em 1992 podem ser vistas aqui (Radio Free Europe).
Para um pouco de contexto histórico, o Abkhaz World tem este sólido artigo sobre a repressão estalinista na região, através de Béria. E em 1997, uma excelente reportagem mostrava as dificuldades de viver numa região tão particular como esta (Radio Netherlands):
Abkhazia’s old age pensioners receive 15-hundred roubles a month, that’s a little over 25 US cents…the price of a loaf of bread. But they’re not the only ones in desperate need of relief aid. The International Committee of the Red Cross, the ICRC, is providing emergency supplies to people in need throughout Abkhazia. The Red Cross has also opened 20 soup kitchens for over 6.000 elderly and disabled people as well as families with many children, like this communal kitchen I visited in Sukhumi.
This is the manager of this canteen. Her name is Angela.
EB: And how many people do they provide food to?
300 beneficiaries every day. The canteen is their only sources of living.
EB: So these people eat only once a day then?
Normally, yes, once a day.
EB: What about people who have difficulty walking?
If it’s difficult for them to attend the canteen every day, their neighbors help them or the representatives from the local Red Cross.
Em 2008, com a guerra entre a Rússia e a Geórgia, a situação na Abecásia voltou a agudizar-se. Desde então, a Rússia tem reforçado ainda mais a sua influência sobre a região. Astamur Achba ajuda a explicar como (European Council of Foreign Relations). Em vez de soldados, o dinheiro é a maneira mais eficaz para os os russos continuarem a ver a Abecásia como a sua antiga colónia de férias — incluindo os espiões do FSB (antigo KGB), como nos conta a Newsweek nesta reportagem.
Por fim, deixo-vos duas sugestões fascinantes sobre a Abecásia. O argumento daquele que é provavelmente um dos maiores especialistas na região, Thomas de Waal, sobre como a Covid pode ajudar a alterar a situação política de impasse no terreno (Carnegie Europe); e a reportagem de um grande escritor, Oliver Bullough, sobre a adjika, o molho nacional da Abecásia (Roads & Kingdoms). Espero que tudo isto vos leve a apaixonarem-se pela história deste enclave como eu me apaixonei.
Sou toda ouvidos para…
Esta semana trago-vos City of Refuge, um podcast sobre a vila de Chambon, em França, que acolheu de braços abertos vários judeus durante a ocupação nazi de França. Para abrir o apetite trago o terceiro episódio, que conta a história de duas pessoas não-alinhadas — um pastor e uma professora —, que contribuíram para esta mudança. É uma bela história, bem contada ao longo de vários episódios.
GIF da semana
É tudo por hoje. Deixo-vos o olhar doce do Burro do Shrek, como se fosse meu, a agradecer-vos por continuarem aqui a ler-nos todas as semanas. E já sabem: para a semana há mais uma entrevista exclusiva para subscritores premium. Se quiser assinar e apoiar o projeto, é só escolher aqui o modelo.
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