Bom dia! Chegou aquela altura do ano em que ninguém sabe o que vestir: ora faz um sol abrasador, ora chove de repente. Bem-vinda, primavera. E dou ainda as boas-vindas a mais uma semana. Em caso de dúvida, leve uma malhinha: se quiser ficar numa esplanada, mais vale estar protegido.
Feitas as contas ao estado da nossa vida, seguimos para o estado do mundo. E bem agitado que ele está, para variar.
Ponto de ordem
A Irlanda do Norte está a ferro e fogo. A Páscoa e o aniversário do Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa foram marcados pelos motins em Belfast, Derry e outras zonas da região, com dezenas de polícias feridos, carros destruídos e muitos cocktail molotov atirados. Mas o que se passa ali afinal para estarmos a assistir aos maiores episódios de violência nos últimos cinco anos, que fazem lembrar os tempos tenebrosos dos Troubles? Como de costume, a BBC dá o resumo mais simples e completo dos media.
Para compreender melhor o timing destes protestos violentos, nada como a imprensa local. O Belfast Telegraph tem uma excelente cronologia para perceber o ritmo e intensidade destes motins. Em causa está o desagrado das comunidades unionistas com o acordo para o Brexit, que criou uma fronteira de facto com o resto do Reino Unido (UK In a Changing Europe). Mas é claro: na Irlanda do Norte tudo é bem mais complexo.
A maioria dos protagonistas destes motins têm sido jovens (muito jovens, por vezes adolescentes e pré-adolescentes), sem idade para se lembrarem dos Troubles. Mas a combinação da rebeldia da idade com a influência das milícias paramilitares que ainda subsistem é um perigoso cocktail que incita à violência, como explica Jenny McCartney no Unherd:
The scenes on the streets are depressing ones, reminiscent of the dark days of the Troubles. The young rioters themselves are, of course, directly responsible for their violent actions. But behind them, particularly in South East Antrim, one can sense the steering hand of older loyalist paramilitaries. It is no coincidence, perhaps, that the Loyalist Communities Council — an “umbrella group” for the UDA, UVF and Red Hand Commando — announced its withdrawal of support in early March for the 1998 Good Friday agreement. The reason was its anger at the post-Brexit Northern Ireland Protocol, which creates a sea border between Northern Ireland and the rest of the United Kingdom by keeping the former a part of the EU’s single market for goods.
(…) I have reported on riots in Northern Ireland, and the unfortunate truth is that for the youths involved they are often wildly exciting occasions. The tacit permission conferred by “political anger” allows young people out on the streets, drinking lager and setting fire to things in a kind of carnival of rage: whoops and laughter are inevitably mixed in with the guttural yells.
Nada de novo em comunidades onde estas milícias estão habituadas a utilizar o seu poder e controlo social para atrair jovens — seja no tráfico de droga, seja agora para fins políticos, como se diz no The Guardian. E não se creia que este é um problema único das comunidade mais lealistas e protestantes — no lado nacionalista católico, descendentes do IRA continuam a fazer o mesmo, como comprova o terrível documentário A Mother Brings Her Son To Be Shot, que tive a oportunidade de ver este fim-de-semana.
É claro que na Irlanda do Norte os fatores que provocam a ignição da violência são vários e os partidos que dominam a política local (DUP e Sinn Féin, respetivamente unionista e nacionalista) têm habitualmente culpas no cartório. Senão, vejamos: um dos fatores que tem alimentado esta raiva na comunidade unionista está no facto de os procuradores locais terem decidido não avançar com acusações criminais contra membros do Sinn Féin que participaram no funeral de um militante desrespeitando as regras relativamente à Covid-19 (Politico). Por outro lado, como relembra o mesmo Politico, a primeira-ministra da Irlanda do Norte e líder do DUP, Arlene Foster, ainda recentemente se reuniu com um órgão que reúne vários grupos paramilitares lealistas, num sinal que pode ter sido interpretado como de incentivo.
Infelizmente, a violência nas ruas de Belfast está longe de ser cenário raro, como nos conta este artigo da RTÉ sobre os motins de há 100 anos. E a Economist relembra que o mais certo é a violência agudizar-se se tivermos em conta o timing, já que começa agora a chamada “época das marchas”, em que vários grupos unionistas (mas também alguns republicanos) organizam paradas com grande fervor comunitário e que envolvem muito os jovens.
Falando em jovens, é importante ouvir o que estes têm a dizer. O The Journal organizou esta conferência com alguns representantes ativos na política de vários quadrantes — e é interessante como muitos destacam a questão da educação e das escolas, ainda altamente segregadas, como uma das mais problemáticas:
Por fim, o papel dos políticos nacionais. O governo de Boris Johnson já está em contacto com os representantes de Belfast e de Dublin na esperança de conseguir gizar um plano para acalmar os ânimos (Irish Times). Mas a verdade é que o primeiro-ministro britânico recusa, para já, organizar uma cimeira sobre este tema e tem tentado lidar com o assunto de forma mais discreta (The Guardian). O que acelera um dos grandes problemas da região: o distanciamento sentido pelos norte-irlandeses face ao resto do país.
Não é por acaso que no Belfast Telegraph a colunista Suzanne Breen cita o jornalista Neil McKay e diz que “se esta violência estivesse a acontecer em Glasgow, Cardiff ou Londres, a cobertura seria interminável. Haveria inquéritos públicos. Mas quanto à Irlanda do Norte, silêncio”. A Irlanda do Norte continua uma realidade distante para Westminster.
Outras latitudes
O mea culpa de Charles Michel sobre o sofagate em Ancara (L’Echo)
Morreu o Príncipe Filipe. Aqui fica um obituário onde se destacam as qualidades do homem e o seu impacto importante na monarquia britânica (Politico)
Uma óptima reportagem sobre negacionistas da Covid no Reino Unido (The Guardian)
O testemunho de um médico-legista que confirmou em tribunal a causa da morte de George Floyd (The New York Times)
Em Donbass, a Rússia volta a assombrar a Ucrânia (OSW)
As histórias dos sem-abrigo nas ruas de São Petersburgo (Meduza)
Em Tigray vive-se também uma guerra de propaganda (Foreign Affairs)
No Senegal, vivem-se dias de manifestações violentas (Washington Post)
Alex Vines e a sua análise sobre o que se passa em Cabo Delgado (Chatham House)
Um ponto de vista sobre a tentativa de golpe de Estado na Jordânia (Responsible Statecraft)
A rivalidade Turquia-EAU alastra-se pelo Médio Oriente (European Council for Foreign Relations)
Os efeitos de Stress Pós-Traumático nos refugiados sírios (Syria Direct)
Myanmar continua abalada pela violência (Open Canada)
Uma reflexão sobre como combater a ameaça do terrorismo de extrema-direita (Lawfare Blog)
Regresso ao futuro
Esta segunda-feira assinalam-se os 76 anos da morte de um dos Presidentes norte-americanos mais marcantes da História: Franklin D. Roosevelt.
A notícia da morte dada à altura pelo New York Times pode ainda hoje ser consultada, com a respetiva imagem da primeira página. Oficialmente, Roosevelt morreu com uma hemorragia cerebral, apenas três meses depois de ser reeleito como Presidente. Mas a a saúde do Presidente, já altamente frágil durante a parte final do seu mandato anterior, sempre foi objeto de especulação (Washington Post).
Afetado por poliomielite, a verdade é que FDR já sofria de problemas cardíacos durante a campanha para a reeleição e era visível como as suas mãos tremiam. Um livro publicado em 2010 avança mesmo uma outra causa de morte (Macleans): de acordo com os autores, Roosevelt sofreria de um melanoma, que teria provocado metástases no cérebro — essas sim, causadoras da hemorragia cerebral.
Certo é que a morte do Presidente, cuja liderança foi fulcral para o papel dos EUA na II Guerra Mundial, abalou os norte-americanos. Este excerto de FDR’s Funeral Train, publicado na Atlanta Magazine, ilustra todo o drama em torno do seu funeral:
Three hours out of Warm Springs, the funeral train swept into the lower city limits of Atlanta, bound for the Southern Railway’s station in the middle of Downtown. Atlanta’s Terminal Station, a magisterial castle of minarets and red-tile roofs, hadn’t seen crowds like these since its 1905 opening. Affording the best perch over the tracks that passed beneath, the Mitchell Street Bridge was a mass of people who spilled onto all the nearby thoroughfares—anyplace with a view, however obstructed, of the yards below. The curious also took up posts along the tracks throughout the city, which had ground to a halt in expectation of the train’s arrival. Theaters, jewelers, shoeshine stands—most every business had closed for the day.
E não só os norte-americanos ficaram abalados pelo anúncio súbito da morte de FDR. Neste artigo, a Voice of America fala com um historiador que aponta para o facto de haver relatos de pessoas a chorar após saberem a notícia nas ruas de Londres, Paris… e até Moscovo.
Sou toda ouvidos para…
História é sempre assunto que me interessa bastante (ou não fosse eu mestranda na área). O podcast History Extra, associado à revista de História publicada pela BBC com o mesmo nome, é uma verdadeira delícia para os que partilham desta paixão. Sejam detalhes da Idade Média ou revelações sobre a Guerra Fria, o podcast vai a tudo com convidados sempre interessantes. Aqui vos deixo um excelente exemplo sobre os espiões reais que inspiraram Ian Fleming para escrever o seu Bond — sabia que a personagem M pode ter sido inspirada na mãe do próprio autor? É ouvir para saber mais.
GIF da semana
Vivemos tempos de desorientação um pouco por todo o lado. Infelizmente, a política externa europeia tem sido um dos campos onde essa desorientação é mais notória — primeiro com Borrell em Moscovo e agora com o Sofagate do triunvirato Erdogan-Von der Leyen-Michel. Uma espécie de auto-golos que temos de encarar com humor.
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