Isto já cansa. À enésima semana de confinamento, esgotaram-se-me as ideias para arrancar com esta newsletter. Com as rotinas reduzidas a dormir, trabalhar, cozinhar e limpar, imagino que muitos de vocês estejam como eu e como o Mr. Spock.
Mas como infelizmente não é possível fugirmos à pandemia, não percamos tempo. Vamos ao que interessa — e o que interessa são as notícias, análises, opiniões, entrevistas e reportagens sobre o que se passa mundo fora.
Ponto de ordem
“Islamo-esquerdismo”. Frederique Vidal, ministra francesa do Ensino Superior, está no centro da polémica em França (Le Monde) por causa desta expressão. Esta semana, Vidal anunciou que o governo francês tenciona fazer um estudo sobre a presença desta “tendência” nas Universidades francesas, que considera ser perigosa e estar muitas vezes ligada a movimentos islâmicos terroristas.
A reação da esquerda não se fez esperar. No Le Monde, 600 académicos franceses publicaram uma carta a pedir a sua demissão. Ao Libération, o economista Thomas Piketty pediu abertamente o seu afastamento do governo. Do outro lado da barricada, o editorial do Figaro fala no “islamo-esquerdismo” como “uma realidade política” e acusa a esquerda de se estar a vitimar.
A polémica podia ser estéril, mas provavelmente está para durar. Não podemos ignorar que estas declarações surgem na mesma semana em que foi aprovada a lei proposta pelo governo de Emmanuel Macron para “reforçar os princípios republicanos” e que pretende promover a laicidade e combater o radicalismo religioso, nomeadamente o islamita. “O Islão político não tem lugar em França”, disse o próprio Macron esta semana, sem papas na língua (Ouest-France). Mas o jornal espanhol NIUS Diario levantou uma série de questões pertinentes: o que é ao certo o “Islão político” e até que ponto está ligado ao terrorismo islâmico?
A lei que anda a ser debatida em público há meses, desde a decapitação do professor Samuel Paty (por ter mostrado cartoons de Maomé numa aula), parece agradar a poucos. Há católicos desconfortáveis com a linguagem adotada (La Croix) e especialistas que criticam a estratégia. É o caso do professor da Sorbonne Steve Duarte, que fala numa lei que se foca demasiado na religião e menos nos problemas que levam de facto ao terrorismo (The Conversation):
“Les djihādistes sont en cela bien plus proches des terroristes de Christchurch, d’Oslo et d’Utøya, voire même du Ku Klux Klan, qu’ils ne le sont d’acteurs de l’islam politisé partageant pourtant l’identification à la même religion.
(…) Pour ce dernier, je ne vois pas d’autres solutions que de renforcer les moyens des professionnels de l’antiterrorisme: renseignement, infiltrations, surveillance sur les réseaux sociaux et messageries cryptées ; chacun son métier, c’est eux qu’il faut impérativement consulter sur ces questions et non des tartuffes.”
Tudo isto acontece ao mesmo tempo que se debate em França se Os Republicanos em Marcha de Macron não estarão a tentar chegar-se mais à direita para roubar votos à Assembleia Nacional de Marine Le Pen. Recorde-se que há menos de duas semanas, Le Pen debateu com o ministro do Interior, Gerald Darmanin, num debate que o Le Monde classificou como um “presente” a Le Pen, já que “Mme. Le Pen apparaît comme modérée par la grâce de la radicalité revendiquée de son adversaire”.
John Lichfield, correspondente britânico em Paris há décadas, discordou e disse que tudo não passava de uma brincadeira de Darmanin que não tinha sido bem captada. Lichfield já tinha publicado um artigo em outubro do ano passado, no Politico, onde dizia que as propostas de Macron sobre o Islão são moderadas na substância, mas convivem com uma retórica mais aguerrida por parte de vários membros do governo — incluindo por vezes do próprio Presidente, em privado. O futuro, diz, terá de ser de definição:
“It will pit the short-term politics of anger against a longer-term policy of democratic reconquest; Macron against some of his glibber, more hot-headed ministers; Macron against Macron.”
Os cientistas políticos falam numa estratégia de “triangulação” por parte de Emmanuel Macron, de forma a tentar roubar votos à extrema-direita e garantir a passagem à segunda volta das presidenciais, marcadas já para 2022, com possível suavização do discurso na segunda parte da campanha, caso se confirme Le Pen como adversária. Mas a estratégia tem riscos, como avisou Mathieu Gallard ao 20 Minutes: “Jean-Marie Le Pen l’avait déjà dit en son temps: les électeurs préfèrent toujours l’original à la copie.”
Outras latitudes
Uma esclarecedora entrevista a Armin Laschet, o novo líder da CDU, na Alemanha, sobre as suas visões para a política externa do país (IP Quarterly)
Na Irlanda do Norte, o unionismo está cada vez mais revoltado com o tipo de fronteira estabelecida com o Brexit (Irish Times)
As histórias de quem ficou sem eletricidade e água no meio de uma tempestade nunca vista, no Texas (Texas Observer)
Um edifício soviético em discussão no enclave da Rússia que faz fronteira com a Polónia, Kaliningrado (The New York Times)
Na Ucrânia, ainda existem guardas de passagem de nível — e são na maioria mulheres (National Geographic)
O que está em causa nas presidenciais do Níger, o país que se tornou uma plataforma global para ações militares de vários países? (Al-Jazeera)
O possível regresso de Ahmadinejad ao poder no Irão (The Economist)
Em Israel, o país que vai à frente na vacinação, a Covid-19 espalha-se entre as comunidades judaicas mais ortodoxas (The New York Times)
A história de uma mulher que foi prostituída desde os 12 anos e que hoje gere um bordel ilustra a indústria do tráfico sexual no Bangladesh (1843 — The Economist)
Como o primeiro-ministro das Ilhas Fiji está a tentar influenciar a política internacional relativamente às alterações climáticas (Foreign Policy)
Regresso ao futuro
“Ninguém compusera o corpo para a última imagem: farda verde oliva desfraldada, deixando ver parte da roupa interior, os pés sem botas, só com meias, moscas pousando no rosto, um buraco de bala na garganta, feridas na cabeça e numa mão. Na sequência seguinte, o corpo, embrulhado na bandeira do Galo Negro, era levado da prancha para um caixão.”
Era assim que Alexandra Lucas Coelho descrevia no Público, em 2002, as imagens difundidas na RTP do cadáver de Jonas Savimbi, morto há precisamente 19 anos. Com a queda do líder histórico da UNITA, selar-se-ia o fim da guerra civil angolana. Também no Público, é possível ver as incríveis fotos captadas por Cloete Breytenbach, no seio da UNITA, em plena Jamba.
Com a vitória do MPLA — em tempos apoiado pela União Soviética — e a queda do líder da Jamba (outrora impulsionado pelos Estados Unidos), a notícia teve bastante repercussão nos meios de comunicação norte-americanos. Vejamos este artigo do New York Times, onde um jovem Rafael Marques já demonstrava a sua veia crítica: “The government had the excuse of Savimbi for all its failures. Now, how is the government going to respond to the population?'', questionou o ativista à altura.
Mas os norte-americanos também reconheceram a crueldade e paranóia de Savimbi, como ilustra este artigo publicado dez anos antes, no Washington Post, em que se fala sobre a perseguição do líder da UNITA ao próprio aliado, Tito Chingunji. Ao Observador, o seu sobrinho Eduardo Jonatão comentaria o seguinte: “Em 1988, quando eu estava em Londres, exigiram-me que fosse à Jamba. Eu só estou vivo porque tive a coragem de recusar.”
Em 2019, já com João Lourenço no poder em Angola, o regime do MPLA permitiu que o corpo de Savimbi fosse transladado para o jazigo da família e tivesse direito a um funeral — contudo, o Presidente não esteve presente, e a cerimónia não teve direito a honras de Estado.
Sou toda ouvidos para…
Perdoem-me o egocentrismo, mas não podia desperdiçar esta oportunidade para vos sugerir que oiçam o World on the Rocks, o podcast onde me junto ao Alexandre Guerra, à Cátia de Carvalho e ao Diogo Noivo para discutir a atualidade internacional da semana em tom descontraído, de copo na mão. Começámos isto por puro gozo (como demonstra a fraca qualidade técnica do meu som — que se ouve como se a minha voz viesse do fundo de um poço), mas acho que o resultado final pode ser interessante para alguns dos que gostam de acompanhar estes temas. Amanhã sai um novo episódio. Se vos agradar, subscrevam e juntem-se a nós nesta aventura!
GIF da semana
À despedida como à chegada: com poucas palavras, como Ted Cruz quando foi apanhado a embarcar para Cancún. Bye-bye.
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Espero que tenha gostado desta edição do Meridiano de Greenwich. Se for o caso, não se esqueça de recomendar aos seus amigos que o subscrevam. Esta newsletter é publicada todas as segundas-feiras. Tenha uma boa semana!