Todos somos Bill Murray. Em mais um dia de confinamento, acordamos e apercebemo-nos de que o dia que temos pela frente é igualzinho ao dia anterior. Estamos condenados a reviver o mesmo dia eternamente, como o ator norte-americano em O Feitiço do Tempo, o filme onde um jornalista da meteorologia é enviado para cobrir o “Dia da Marmota” em Punxsutawney (Pensilvânia) e acaba por entrar numa situação estranha e repetitiva.
A referência veio a propósito de o Dia da Marmota se assinalar a cada 2 de fevereiro — com o objetivo de tentar prever o tempo com base no comportamento do bicho —, mas encaixa que nem uma luva nos tempos em que vivemos. Pela repetição dos dias, mas não só. Sabia que as marmotas constroem as suas grutas e habitam nelas em espaços divididos e separados por funções (incluindo a casa-de-banho), como nós tentamos fazer nas nossas casas? E sabia que são animais solitários, como nós temos sido nos últimos tempos? E sabia que dormem bastante, como… OK, não todos nós, mas pelo menos como alguns de nós têm feito?
A lição de biologia veio da National Geographic. E se isto tudo não fossem razões suficientes para falar do “Dia da Marmota”, este GIF já justificaria tudo.
Ponto de ordem
É inevitável. Nesta edição temos mesmo de nos focar no que aconteceu em Myanmar ao longo da semana passada. O Exército levou a cabo um golpe de Estado e voltou a deter Aung San Suu Kyi. A razão invocada foram uns walkie-talkies que a líder birmanesa teria em casa, sem autorização (New York Times).
Seguiram-se as habituais táticas de controlo da informação e repressão, com um blackout na Internet. O Rest of the World, publicação especializada em tecnologia, relata ao pormenor como foi feito esse controlo dos media ao longo dos primeiros dias e que agora começa a ser aliviado.
A sociedade civil reagiu, com várias manifestações a pedir a libertação de Suu Kyi. Na capital, o sentimento é de desespero: “A Covid é má… Mas um golpe militar? Isso é o pior. Já passei por isto três vezes”, desabafou o dono de uma loja em Yangon à 1843 (Revista da Economist).
Desde sábado que se registam enormes protestos no país, como ilustram estas fotos da Al-Jazeera. E falando em país, como devemos chamar-lhe? Birmânia ou Myanmar? Um nome pode ser apenas um nome, mas a verdade é que há uma história por trás desta mudança (Associated Press).
Aung San Suu Kyi esteve detida durante mais de uma década pelos militares, o que lhe valeu vários prémios como ícone de resistência democrática (BBC), incluindo o Nobel da Paz em 1991. Com o aparente fim da ditadura militar, o seu partido (Liga Nacional pela Democracia, NLD) ganhou uma vitória retumbante em 2015. Suu Kyi foi impedida de se tornar Presidente devido a uma cláusula na Constituição, mas, como política hábil, contornou-a e conseguiu ser nomeada “Conselheira de Estado”, um cargo que na prática equivalia ao mais alto da Nação.
Foi uma das primeiras ações da birmanesa a provocar incómodo junto da comunidade internacional, a que se seguiu a perseguição feroz aos Rohingya, uma minoria muçulmana que fugiu em massa para o Bangladesh e outros países vizinhos. Como consequência, Suu Kyi veria ser-lhe retirado o Prémio Sakharov (Politico EU) e passaria de heroína a vilã na cabeça de muitos. Isso não invalida, no entanto, que o golpe de Estado dos militares é, uma vez mais, um retrocesso num país onde, infelizmente, a cultura democrática ainda não está entranhada, como explica este artigo da Foreign Affairs.
Max Fisher, colunista do New York Times, vai mais longe: em tempos, Myanmar parecia estar à beira de uma transição semelhante à da África do Sul. Mas Suu Kyi provou não ser como Nelson Mandela, avisa o jornalista:
Ms. Aung San Suu Kyi’s critics charge that, rather than keeping Myanmar’s political factions bought in to the democratic transition, she mostly sought to muscle them out. They accuse her of hollowing out her own party, replacing experienced hands with flunkies; purging would-be rivals; heightening restrictions on journalists; marginalizing Myanmar’s minorities in favor of her ethnic Burmese support base; and consolidating what even some members of her party characterize as the beginnings of authoritarian rule.
“It became a one-woman party,” Mr. Paliwal said.
No meio de tudo isto, os Rohingya continuam a ser uma minoria desprotegida e violentada, que pode acabar por ser esquecida no meio de tudo isto (Overseas Development Institute). Myanmar é uma tragédia inacabada.
Outras latitudes
“É muito difícil curar toda a dor que a ETA provocou”, reflete a autora Juana Cortés Amunarriz sobre o terrorismo basco em Espanha, tema do seu último romance (Papel — El Mundo)
Na Baviera, o anti-semitismo não é coisa só do passado. Há cada vez mais agressões físicas e verbais a judeus a ocorrerem na Alemanha (Der Spiegel)
Homem, com 57 anos de idade e licenciatura em Direito. É assim o típico burocrata da União Europeia (Politico EU)
Alexey Navalny foi condenado a três anos de prisão, na Rússia, mas aproveitou o seu testemunho em tribunal para acusar “Vladimir, o Envenenador” (Meduza)
Joe Biden, como novo Presidente dos Estados Unidos, anunciou as suas intenções de renovar o papel da diplomacia norte-americana no mundo, incluindo com o Irão. Uma entrevista a Barbara Slavin sobre o estado da relação entre os dois países (Journal of International Affairs — Columbia)
Dos Buffalo Soldiers aos veteranos do Vietname. A História dos negros nas forças armadas dos EUA (National Geographic)
O Presidente Jovenel Moïse não quer sair do poder e o Haiti está a ferro e fogo (Miami Herald)
No Equador, um candidato surpreendente destacou-se na campanha para as eleições deste domingo (Americas Quarterly)
Um antigo soldado-criança do Lord’s Resistance Army, no Uganda, foi condenado por crimes contra a Humanidade (The Guardian)
Em Angola, os protestos na província do Lunda Norte foram violentamente reprimidos pela polícia (Humans Rights Watch)
Nos países do Golfo Pérsico, a imigração de vários pontos da Ásia é muita. As condições destes migrantes podem ser comparadas à da escravatura (Aeon)
Por fim, a sugestão de uma entrevista ao advogado Reed Brody, conhecido como “O Caça-Ditadores” (El País Semanal)
Regresso ao futuro
A efeméride de hoje é negra: há precisamente 71 anos era oficialmente criada a Stasi, a polícia política da República Popular Alemã, ou seja, da Alemanha de Leste.
A espionagem do dia-a-dia de milhões de pessoas era feita de forma metódica e não poupava ninguém, caso houvesse pistas de informadores ou outras fontes. A monitorização registava os os detalhes mais banais — como o facto de um dos vigiados cozinhar uma receita da Alemanha Ocidental, por exemplo —como nos relata este artigo de 2009 da Der Spiegel. (A imagem, essa, é de mais uma fotogaleria preciosa da Radio Free Europe)
A rede de informadores era grande parte do sucesso da Stasi — alguns seriam coagidos a fazê-lo, outros representaram esse papel de bom grado. Uma delas foi Salomea Genin, que partilhou o seu testemunho em dois momentos diferentes da História com o jornalista Matthew Engel. O resultado merece ser lido (1843 — The Economist).
A sede da polícia política, em Leipzig, foi cela e local de tortura para muitos. Hoje o edifício pode ser visitado e, se tiverem a mesma sorte que o autor deste artigo (Huffington Post), podem ali cruzar-se com uma das ex-vítimas da Stasi:
“Well,” I said, “What is it like to walk the halls now knowing what you know took place here?”
She smiled. “I don’t mind it when people are here to see the museum,” she said. “But when I’m here at night by myself I usually hum music from Mozart or Bach. I like to think that it would drive the Stasi crazy.”
A ação da Stasi não se limitava, contudo, ao que acontecia dentro da RDA. Os tentáculos da polícia política alemã estenderam-se para Ocidente, conseguindo montar várias operações na RFA. Isso mesmo já era denunciado por esta grande reportagem da New York Times Magazine em 1990. É preciso recordar que do outro lado da cortina de ferro, nenhuma área era imune à política, nem sequer o futebol: o Dynamo de Berlim cumpria o seu papel como “o clube da Stasi” (CNN), à semelhança do que acontecia em Kiev ou Moscovo com os restantes Dynamos e a respetivas polícias políticas.
Não é por isso de espantar que, apenas algumas semanas após a queda do Muro de Berlim, muitos alemães tenham invadido a sede da Stasi (The Local Germany). Foi graças à sua ação que hoje em dia é possível continuar a tentar reconstruir, pedaço a pedaço, muita da documentação destruída pelos responsáveis da polícia, como nos mostra este vídeo da Deutsche Welle.
Sou toda ouvidos para…
Hoje trago-vos como sugestão o podcast Your Undivided Attention, do Center for Humane Technology, que é uma excelente escolha para quem quer explorar os efeitos da tecnologia nas nossas vidas, mas não faz ideia do que são cookies, a dark web ou HTML. Escolhi o episódio “Rock the Voter”, que me deixou de queixo caído: é o testemunho de uma antiga trabalhadora da Cambridge Analytica que fala sobre as novas e perigosas formas de fazer campanha e captar eleitores online.
GIF da semana
Mais uma volta, mais uma viagem. Temos outra semana difícil pela frente — e por isso deixo-vos com um pouco de motivação, cortesia do The Office.
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