Vacinas, vacinas, vacinas. Estamos inundados de notícias sobre o tema, seja sobre a guerra entre a Comissão Europeia e a AstraZeneca, seja sobre as ultrapassagens de alguns em Portugal para receber a primeira dose o mais rápido possível.
Como imagino que devem estar tão cansados do tema como eu, deixo aqui apenas um longo artigo do Politico sobre o que se passa com o plano de vacinação da Europa, para quem quiser perceber melhor o que se passa — mas nada mais. Sugiro antes um pouco de escapismo, seja em livros, séries ou música (eu acabei de ver a Mrs. America este fim-de-semana e não podia recomendar mais). E atenção a notícias, sim, mas também a de outras latitudes, como as que hoje vos trago.
Dito isto, Janeiro pareceu um mês interminável, mas finalmente chegou ao fim. Só faltam mais 11 meses para nos vermos livres de 2021.
Ponto de ordem
Nicola Sturgeon, a primeira-ministra da Escócia, largou uma bomba já esperada no domingo da semana passada: um plano com 11 pontos do seu partido, o SNP, para que se venha a realizar um novo referendo à independência da região face ao Reino Unido.
Com o acordo para a relação futura entre Reino Unido e UE assinado, os nacionalistas escoceses aproveitam a oportunidade do Brexit para avançar com a sua causa independentista. Mas o problema está longe de ser simples. Por um lado, as sondagens têm sido claras em dar conta da vontade da maioria dos escoceses de ter um novo referendo (BBC e The Times); por outro lado, o SNP tem dito que preferia ter um referendo autorizado por Westminster, como aconteceu em 2014, mas o governo de Boris Johnson não está disposto a fazê-lo. Assim sendo, há um Plano B, caso o SNP decida agir unilateralmente, mas o mais certo é tal ação acabar nos tribunais, como explica o The Guardian.
No meio de tudo isto, Boris Johnson decidiu fazer uma viagem inesperada à Escócia, para tentar conter o ímpeto nacionalista — e foi acusado por Sturgeon de estar a quebrar as regras impostas para a pandemia, que impedem viagens “não-essenciais”.
Boris foi à mesma e respondeu assim a Sturgeon, em território escocês:
A posição do governo conservador mantém-se irredutível: nada de referendo. Alister Jack, o ministro para a Escócia, reforçou a ideia:
“We can’t go into a process of neverendnums until eventually they get one, they win.”
O líder da oposição em Westminster, o trabalhista Keir Starmer, colocou-se ao lado de Boris Johnson neste tema (The National) e apoiou a viagem à Escócia. O Labour, contudo, está dividido sobre como se posicionar sobre um hipotético referendo, numa região onde o seu eleitorado está a sofrer uma sangria para o SNP. É por isso que não é difícil encontrar colunistas à esquerda, como na revista New Statesman, a pedir a Starmer que apoie este mecanismo. A situação, como se resume neste artigo do Politico sobre a liderança de Starmer, está longe de ser fácil:
“Starmer’s MPs are aware Scotland is a tough spot for Labour. Some argue he should offer a confidence and supply pact to the SNP, but without offering a referendum. Others, such as left-wing firebrand Ian Lavery, argue Scotland should be offered another referendum to get the constitutional question off the table, but that Labour should fight to keep the U.K. together.
‘We cannot get past the doorstep in Scotland unless we’ve got an idea on the way forward constitutionally in Scotland,’ Lavery said. An election for the next Scottish Labour leader is currently underway.”
Sobre o tema, temos opiniões para todos os gostos. No The Guardian, John Crace fala em “hipocrisia” por parte do primeiro-ministro; no The Telegraph, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros William Hague lamenta o “rolo compressor” que é o nacionalismo escocês.
Para trazer um pouco de cor ao tema, nada como ler a reportagem “Scotland’s Destiny” da excelente revista Point.51, que aborda temas europeus com grande qualidade. A viagem começa pelo relato de Ian Hamilton, que na juventude se juntou a outros três amigos para roubar um símbolo do nacionalismo escocês da Abadia de Westminster, e acaba na situação atual e na reflexão sobre a necessidade de ter ou não um referendo. Tudo com fotografias incríveis, como esta aqui em baixo, a acompanhar.
Por fim, e para lembrar que o nacionalismo escocês não é o único problema separatista no Reino, olhemos para a Irlanda do Norte. A região tomou conta das manchetes da passada sexta-feira por causa, precisamente, das vacinas para a Covid-19 (here we go again, afinal temos vacinas — mas pouco).
A União Europeia equacionou invocar o Artigo 16 do recém-assinado acordo (para resolver o problema da fronteira entre as Irlandas), o que impediria a circulação de vacinas da República da Irlanda para a Irlanda do Norte. Conseguiu, assim, chatear toda a gente. O primeiro-ministro irlandês, que preza os laços comerciais com os vizinhos do Norte, não gostou e a homóloga da Irlanda do Norte, a unionista Arlene Foster, também não (BBC). Boris Johnson telefonou, irritado, a Ursula von der Leyen, e a UE recuou num ápice, depois da chuva de críticas.
Os norte-irlandeses unionistas acreditam que este incidente prova que o acordo assinado com a UE para a fronteira é problemático, porque deixa a Irlanda do Norte numa espécie de “terra-de-ninguém”, não pertencendo verdadeiramente ao Reino Unido, e ficando refém dos ímpetos da UE. E as queixas contra o acordo têm subido de tom na região, avisa a polícia, de acordo com o Belfast Telegraph.
Já os norte-irlandeses nacionalistas vêem em ações como esta novos argumentos para avançar com um referendo à reunificação das Irlandas (algo previsto no Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa, caso haja essa vontade “na maioria da população” — um termo vago e problemático). O Reino está unido por enquanto, mas o Brexit veio corroer as correntes que unem as nações dentro do país. Para uma verdadeira reflexão sobre o tema, aconselho muito este artigo do professor Daniel Wincott.
Outras latitudes
Depois de se ter assinalado o Dia em Memória das Vítimas do Holocausto, nada como ler mais um relato arrepiante de um sobrevivente, para continuarmos a recordar (Süddeutsche Zeitung)
Há duas semanas, escrevi aqui sobre o que se passa em Itália, mas cometi um erro pelo qual me penitencio: Renzi já não é do Partido Democrático, lidera agora um partido chamado Italia Viva. E, entretanto, o primeiro-ministro demitiu-se (mas espera continuar no lugar). Se fica tão perdido como eu na política italiana, leia isto para entender o que se passa (The Economist)
Na Ucrânia, há uma lei que proíbe monumentos ao comunismo. Mas muitas estátuas de Lenine ainda se mantêm de pé (Radio Free Europe)
Joe Biden já é Presidente dos Estados Unidos e aproveitou esta semana para reverter várias medidas da administração Trump. Mas apesar da maioria do Congresso, pode ser-lhe útil dar-se bem com alguns congressistas republicanos. Este artigo revela como é a sua relação com Mitch McConnell, líder do GOP no Senado (Politico)
Lenka Perron, uma norte-americana que deixou de acreditar no QAnon (The New York Times)
“‘Q managed to make us feel special, that we were being given very critical information that basically was going to save all that is good in the world and the United States,’ she said. ‘We felt we were coming from a place of moral superiority. We were part of a special club.’”
Na América Latina, a Covid-19 está a fazer crescer o crime organizado (America’s Quarterly)
Viver não debaixo de um viaduto, mas dentro dele. São assim as condições de vida de alguns no Brasil (TAB — UOL)
Em África, muita da oposição política é agora feita não por políticos ou ativistas, no sentido tradicional do termo, mas por rappers (Unherd)
A propósito de África, o conflito na República Centro-Africana voltou a agudizar-se. Este explicador ajuda a perceber o que ali se passa (Foreign Policy)
No Médio Oriente, tudo continua em ebulição, 10 anos depois da Primavera Árabe (Newlines Magazine)
Dos milhares de refugiados sírios espalhados por todo o mundo, quase 900 mil estão no Líbano, onde vivem em situações altamente precárias e enfrentam o antagonismo de muita da população (Washington Post)
Esta semana, a Índia foi palco de manifestações por parte dos agricultores, que resultaram num morto e 80 feridos (BBC)
Na China, onde a política do filho único foi abolida há menos de 6 anos, o Estado está com dificuldades em convencer os jovens a terem mais filhos (South China Morning Post)
Kim Yo-jong, irmã do líder da Coreia do Norte, foi retirada do Politburo. Mas isso não significa que a irmã de Kim Jong-un tenha perdido influência (38 North)
Regresso ao futuro
Esta segunda-feira assinalam-se os 42 anos do regresso do ayatollah Khomeini ao Irão, na sequência da revolução iraniana.
Um excelente relato do voo e da chegada triunfante de Khomeini a Teerão é feito pelo jornalista da BBC John Simpson, que relembra o momento em que um repórter norte-americano perguntou ao líder religioso o que sentia por estar de regresso do exílio. “Hichi”, respondeu-lhe Khomeini. Ou seja, “nada”. Uma excelente fotogaleria sobre esse dia, de onde esta foto foi retirada, pode ser vista aqui (Radio Free Europe).
O regresso de Khomeini foi o combustível necessário para propagar ainda mais o fogo da Revolução de 1979 e consolidar o ayatollah como líder supremo do país e o Irão como uma teocracia que se mantém quase inalterada até hoje.
Mais de 40 anos depois, que reflexões suscita esta efeméride? No Arab News, jornal publicado na Arábia Saudita (inimiga geopolítica do Irão), fala-se num sistema político “hipócrita”, que “fazia melhor se deixasse de fingir que tem eleições”. Já na Al-Jazeera, televisão do Qatar (o país do Golfo que tem provavelmente as melhores relações diplomáticas com o Irão), destaca-se o momento em que “pela primeira vez, o Irão se tornou independente de poderes estrangeiros”. No Ocidente, Marc Martorell Junyent aproveita no blog da LSE para olhar para o presente e futuro do Irão, antevendo uma possível “divisão entre as fações reformistas e pragmáticas” nas presidenciais de 2021, o que beneficiaria os conservadores religiosos — e manteria tudo na mesma.
Opiniões à parte, trago-vos ainda um testemunho verdadeiramente curioso de um juiz iraniano que apoiou Khomeini no seu regresso e que hoje gere uma pequena mercearia. Aqui estão estes 42 anos vistos pelos seus olhos e contados à Reuters.
Sou toda ouvidos para…
Aproveitando que a newsletter desta semana começou com o Reino Unido (e eu assumo o meu fraquinho por tudo o que ali se passa), deixo-vos com a sugestão de experimentarem ouvir o Red Box Politics, um podcast do The Times que aborda tudo e mais alguma coisa sobre a política britânica. Os episódios costumam ser centrados na atualidade, mas às vezes a equipa de Matt Chorley brinda-nos com pérolas como esta: afinal, como é realmente o dia-a-dia de um primeiro-ministro? (Spoiler alert: contém testemunhos de ex-conselheiros).
GIF da semana
Pensei em abordar esta semana toda a controvérsia que envolve a GameStop, mas remeto-me à minha ignorância sobre mercados financeiros e prefiro sugerir que leiam quem percebe do assunto. Em suma, pelo que entendi, acho que tudo se pode resumir neste GIF: há algumas pessoas no Reddit que devem andar a sentir o mesmo que esta senhora.
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Espero que tenha gostado desta edição do Meridiano de Greenwich. Se for o caso, não se esqueça de recomendar aos seus amigos que o subscrevam. Esta newsletter é publicada todas as segundas-feiras. Tenha uma boa semana!