O mito e a verdade sobre Bolsonaro, Vinicius como homem do mundo e Maria Vai Com As Outras. Um Meridiano especial sobre o Brasil
Edição #18
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Ponto de ordem
O Brasil está, de novo, em convulsão profunda. No país onde já mais de meio milhão de pessoas morreu devido à Covid-19 (G1), uma comissão parlamentar de inquérito está a descobrir as falhas graves na gestão governamental da pandemia e até, possivelmente, crimes do próprio Presidente Jair Bolsonaro.
Esta semana, o antigo dirigente da logística de vacinas, Roberto Ferreira Dias, testemunhou e acabou detido, como conta a edição brasileira do El País. Os militares, envolvidos até aos dentes neste governo, não se escapam às suspeitas. E o Presidente prossegue, sem máscara, desafiante. Tudo enquanto se vai sabendo de escândalos como a da preferência de compra da vacina indiana, muito embora a Pfizer tivesse chegado mais rapidamente ao Brasil e por menor preço (Piauí).
As sondagens revelam um Bolsonaro em queda. A maioria, como conta a Folha de S. Paulo, considera-o “desonesto, falso, incompetente, impreparado, indeciso, autoritário e pouco inteligente”. As manifestações que pedem o seu impeachment multiplicam-se pelas ruas (Terra), que, porém, ainda não se enchem com a mesma dimensão dos tempos em que se pedia a cabeça de Dilma Rousseff. A destituição deste Presidente não é assim tão fácil, como explica a BBC:
Para o cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), os três principais obstáculos são: a aliança de Bolsonaro com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) (única autoridade que pode iniciar o procedimento), a falta de votos suficientes entre os deputados para dar aval a um processo de cassação no Senado, e a dimensão ainda insuficiente de atos nas ruas capazes de pressionar os parlamentares a mudar de posição.
Até o próprio Lula da Silva, que publicamente defende o impeachment (Metropoles), provavelmente preferiria derrotar Bolsonaro nas urnas. Lula, ele próprio ainda de imagem manchada, é o passado, mas promete futuro.
Esse, com ou sem Bolsonaro, será à mesma difícil. Meio milhão morreu. Os brasileiros elegeram Bolsonaro. Os brasileiros dizem que agora não querem Bolsonaro, mas ainda não se mobilizam por inteiro. O Brasil está a tentar descobrir quem é, como resume Elaine Brum (El País Brasil). E sim, Bolsonaro é um mito e continuará a sê-lo:
Quando Bolsonaro invoca para si a “verdade”, neste sentido, o do mito, ele está rigorosamente afirmando a verdade. Ele é a verdade sobre o Brasil. Não toda a verdade, nunca toda a verdade, mas uma parte substancial da verdade da nação fundada sobre corpos humanos e não humanos, sobre a violação e esgotamento da natureza, sobre a corrupção dos corpos e do patrimônio comum. Nação fundada e ativamente assim mantida até hoje. O grande mentiroso mente sobre tudo, mas não sobre o que é —nem sobre o Brasil.
Resta saber o que irá o Brasil fazer com essa verdade.
Outras latitudes
Afinal, o primeiro-ministro da Suécia continua no poder (Politico)
Como algumas quintas no Reino Unido se reiventaram (The Guardian)
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O estoicismo está de novo na moda (Vice)
Como lidam as crianças com a morte (Aeon)
Regresso ao futuro
Vinicius de Moraes morreu há 41 anos. O que está um poeta a fazer nesta newsletter sobre política internacional? Muito. Vinicius era não só um encantador de palavras, como um homem de mundo, que sofria com o que se passava à sua volta:
Se você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto de minha vida
O excerto é da última resposta na última entrevista que Vinicius deu em vida, à Revista Bula, e ilustra bem o quanto a política o definia.
A conversa é toda ela recheada da consciência que Vinicius tinha do mundo, intercalada com os seus pensamentos sobre as mulheres, Deus, o casamento, a música, o Brasil. Um homem com consciência de si próprio e do seu percurso:
Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada. Saí um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.
Culto, viajado, o que muitos não sabem é que Vinicius não foi apenas poeta: foi também diplomata. Esteve nos EUA e no Uruguai, conviveu de perto com políticos e estrelas de Hollywood, aprendeu a lidar com a realidade fria e concreta do mundo, sempre acompanha pelo éter da poesia. Foi despedido do Itamaraty não pelas suas posições de esquerda, mas por ser considerado demasiado “boémio”, uma postura que o poder considerava não se coadunar com as suas funções (TAB - UOL).
Em 1987, o Jornal do Brasil resgatava um poema de Vinicius que dizia
Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos/Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão/Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes/Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.
Lúcido, auto-crítico, consciente do que o rodeava e o maior dos poetas. Vinicius de Moraes, cidadão do mundo.
Sou toda ouvidos para…
Continuando na onda brasileira, hoje escolho o Maria Vai Com As Outras, que chegou ao fim esta semana. O podcast da Piauí era um excelente produto sobre o feminismo e o lugar das mulheres no Brasil contemporâneo. Vale a pena explorar, mesmo que retroativamente. Deixo este aperitivo de conversa com duas mulheres que têm profissões tipicamente masculinas.
GIF da semana
Tinha muito a dizer-vos, mas a vida e o mundo são demasiado complicados. O melhor às vezes é, como Barack Obama, parar para rir antes de falar. Bom fim-de-semana!
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