Um conflito de Sísifo no Médio Oriente, a sobrevivência de Liz Cheney e 31 anos de um Sendero negro
Edição #16
Olá!
Perdoem-me as poucas palavras esta manhã, mas estou num daqueles dias em que o trabalho se acumula e o sono também.
Mas o Meridiano não falha. Aqui vamos nós!
Ponto de ordem
Esta semana é inevitável: regressamos à violência no Médio Oriente e ao sisífico conflito israelo-palestiniano.
Como já é habitual, aqui fica o ponto de situação da BBC. Mas no New York Times Patrick Kingsley vai mais a fundo e explica os protestos na Mesquita de Al-Aqsa que levaram a esta escalada de violência. O último dia do Ramadão e a concentração de pessoas, combinadas com uma manifestação contra a expulsão de famílias árabes de uma bairro em Jerusalém Oriental foram o rastilho. A ação da polícia de Israel o fósforo.
Depois seguiu-se um filme que infelizmente não é o novo: O Hamas (que atualmente controla a Faixa de Gaza) decidiu enviar um sinal em forma de rockets; as Forças Armadas de Israel responderam com toda a sua força militar, naquela que é a maior escalada de violência na região desde 2014. As discussões sobre a proporcionalidade da resposta, os túneis do Hamas, o direito à defesa de uns e a resistência à ocupação de outros — tudo se repete, bem como o número de mortes, onde se incluem sempre crianças.
Na superpopulada Faixa de Gaza, o dia-a-dia é passado à espera das bombas (Der Spiegel):
Many Palestinians now say they leave their windows open at night, so their glass doesn’t splinter from shock waves from the detonations. Those who can have moved into the ground floor. Hardly anyone can sleep.
Os palestinianos da pequena língua de terra estão encurralados, física e politicamente. A mesma reportagem da revista alemã aponta como poucos ousam criticar a liderança do Hamas, que domina há 15 anos a região. As raízes no local entre o partido político/grupo terrorista e a população são fulcrais e ajudam a explicar a sua manutenção no poder; o Hamas está entre os civis e apoia os civis na sua rotina, ganhando uma lealdade a longo-prazo. A ineficácia da Autoridade Palestiniana e os anos sem resolução para o conflito reforçam esta velha dinâmica instalada desde que a Fatah foi derrotada em 2006 e fazem com que o grupo terrorista se assuma como único a falar pelos palestinianos. E as eleições na Palestina vão sendo adiadas.
Do lado de Israel, as críticas internacionais à desproporcionalidade dos ataques a civis repetem-se, a começar pelas Nações Unidas — as mesmas cujas resoluções sobre o conflito foram tantas vezes ignoradas por sucessivos governos israelitas. O ataque a um edifício onde estava o escritório da Associated Press (The Guardian) granjeia a hostilidade de muitos jornalistas para com Israel. As velhas dinâmicas repetem-se, no conflito que parece nunca ter fim (The Guardian).
O sofrimento, essa, é bem real. Vejamos dois exemplos em artigos de opinião de ambos os lados. No meio desta ofensiva, assinalou-se a Nakba, a “catástrofe” para os palestinianos, que assinala a expulsão dos seus avós em 1948 — Dima Srouji (+972 Magazine) fala em violência “intergeracional” e na impossibilidade de desligar este ataque do passado:
The Second Intifada never ended, just as the First Intifada never ended, just as the Nakba never ended. These events live through every Palestinian. We all feel a continuous incompleteness, but we continue to endure despite Israel’s apartheid.
Do outro lado, Liat Collins (Jerusalem Post) fala no direito à defesa de Israel e relembra que o Hamas usa a violência indiscriminadamente, atacando os israelitas mas também os cidadãos árabes que vivem em Jerusalém:
When I want to mark the special place of Jerusalem in my heart, I sing a song, write a poem, read a psalm or recite a prayer. I do not stockpile rocks and Molotov cocktails in a holy site to use as ammunition against police or anyone I don’t like the look of. If Hamas really loves Jerusalem as much as it claims it has a very strange way of showing it – launching seven rockets on the Holy City without caring where they might land.
No meio de tudo isto, há o contexto político. Os Estados Unidos de Joe Biden, que esperavam subalternizar este conflito e focar-se noutras áreas do mundo, são agora forçados a voltar à velha dinâmica de mediadores do conflito, embora mantendo claro que o seu aliado é Israel. Biden já está sob uma chuva de críticas da ala mais à esquerda do seu partido — mas, como relembra a Foreign Affairs neste artigos, os Estados Unidos não podem fazer muito para resolver este problema.
Em Israel e na Palestina, o contexto também é fulcral: Netanyahu tinha sido afastado da tentativa de formar governo mas, no meio desta ofensiva, consegue reemergir novamente como possibilidade — o que já foi denunciado por Yair Lapid, formalmente mandatado para formar governo, mas que viu os aliados judeus ortodoxos e árabes a abandonarem as conversações graças à violência (Haaretz). Do lado da Palestina, o Hamas continua a tentar provar que defende mais as populações e consegue concessões e períodos de paz graças aos seus rockets, caso as eleições venham a realizar-se (Newlines Magazine).
No resto do mundo, as posições extremam-se, entre os que defendem Israel acriticamente e os que consideram que a Palestina, por ser o lado mais fraco e que acumula sempre mais mortes de civis, tem sempre razão. No Unherd, Giles Fraser sugere uma reflexão que achei particularmente tocante sobre como olhamos para este conflito: talvez mais importante do que tomar lados, seja lamentar as mortes; mais importante do que apontar dedos, seja evitar deixarmo-nos enredar na politização do conflito e lembrar que há vidas em jogo:
So I don’t have my own obvious fix for the Israel/Palestine. I am a Zionist because I believe in the right of the Jews to a homeland of their own. And that goes with a right to defend themselves. I also believe that Palestinians deserve the same, which is why I believe in two states for two peoples. I may not know how best to achieve what most others want too. But this much I do know: frightened children look very much the same, wherever they come from. And there is something especially hateful about taking the suffering of some and using it as justification for the suffering others.
Outras latitudes
Quem é a mulher dos Verdes que pode vir a liderar os destinos da Alemanha? (The National Interest)
Um pequeno documentário sobre o lugar das mulheres no conflito sectário em Belfast (The Guardian)
Liz Cheney, símbolo dos republicanos anti-Trump, foi afastada do topo do Partido . Mas a sua vida política pode não ter acabado (Washington Post)
O dissidente do PiS que é a maior ameaça ao governo polaco (Politico Europe)
A magia negra e o narcotráfico na Colômbia (Daily Telegraph)
No Chile, votou-se para uma nova Assembleia Constituinte para deixar para trás a dos tempos da ditadura de Pinochet (La Nación)
A morte do Presidente Idriss Déby no Chade e a militarização da política no país (Washington Post)
“Sei que estou a uma bala de distância da morte”, reconhece o Presidente do Afeganistão (Der Spiegel)
A China enfrenta graves problemas de fertilidade, uma herança da política do Filho Único. Mas em Xinjiang forçam-se as mulheres muçulmanas a não terem filhos (The New York Times)
A polémica base da spaceX em Boca Chica, no Texas (Texas Monthly)
Regresso ao futuro
Há precisamente 31 anos, o Peru estava em vésperas de eleições históricas quando uma guerrilha terrorista, o Sendero Luminoso, irrompeu numa assembleia de voto e queimou as urnas. Foi o primeiro sinal da violência que se seguiria, implacável, que deixou um rasto de destruição.
O impacto da violência do Sendero Luminoso marcou para sempre o Peru. Esta extraordinária reportagem da UOL no país é uma excelente ilustração deste conflito:
Ela lembra de ter sido levada a um apartamento em Lima e de encontrar os filhos de Maria Elena, atônitos. Eles a confundiram com a mãe. Lembra também do sangue e dos pedaços de carne e cabelo que eles tinham pelo corpo. E de saber que, além de terem matado sua irmã, os senderistas haviam amarrado dinamite a seu corpo e acendido o pavio na frente de seus filhos. Os garotos tinham 8 e 10 anos na época.
A violência do Sendero é inesquecível pelas piores razões, mas a resposta também violenta da ditadura de Fujimori deixou as suas cicatrizes. A reconciliação nacional é ainda mais difícil numa realidade assim, como apontava o New York Times em 2012.
Este é o ponto de situação atual, com o grupo minoritário mais ligado ao tráfico de droga do que ao terrorismo (France 24). Mas com o Peru em plenas eleições presidenciais (a segunda volta é daqui a menos de dois meses), os fantasmas não desaparecem: de um lado temos Pedro Castillo, com ligações a grupos semelhantes ao Sendero; do outro, Keiko Fumijori, filha do antigo autocrata. Importante são posições como a que a política de esquerda Sigrid Bazán tomou em 2019, condenado claramente a violência do Sendero, num artigo que termina com a frase “Terrorismo nunca mais” (La Republica).
O país, contudo, teima em não conseguir distanciar-se do passado, como aponta a Economist (e bem):
Alberto Fujimori, who presided over Sendero’s defeat and the economy’s revival, used its threat to erect a dictatorship. Hailed by many as a saviour, and hated by many others as a corrupt authoritarian, Mr Fujimori continues to divide. In different ways, both he and Sendero weakened institutions.
Max Hernández, a psychoanalyst, argues that despite the Truth Commission, the country “never carried out the job of grieving, of trauma relief”. He says that the war revealed that, after five centuries of racial mixing, Peru had yet to bridge the divide between its indigenous population and the rest. Three-quarters of the victims of the war were Quechua-speaking rural people, treated with contempt by Mr Guzmán and with indifference by the state.
Para compreender melhor este tema, que me fascina e do qual sinto que ainda tenho muito a aprender, encomendei recentemente o livro The Shining Path: Love, Madness, and Revolution in the Andes. É uma tentativa de compreender melhor tanta violência e “o estranho timing de uma insurreição comunista que aconteceu quando a União Soviética estava a colapsar e a China estava a começar a abraçar a economia mundial” (America’s Quarterly).
Sou toda ouvidos para…
Um homem morre num bosque e deixa para trás uma mala cheia de artefactos estranhos. Afinal ele não era quem dizia ser. Ao investigar esta história, o jornalista Eric Mennel confronta-se com o seu próprio passado e família. Stay Away é storytelling no seu melhor.
GIF da semana
Continuo com dificuldade em abrir os olhos, mas, como se costuma dizer, parar é morrer. Vamos a mais uma semana!
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